Ainda estamos aqui: uma travesti redefinindo a justiça

Seguimos resistindo e redefinindo a justiça e os padrões

28|01|2025

- Alterado em 28|01|2025

Por Victória Dandara

Gosto muito da mensagem implícita na ideia de “visibilidade trans”. Embora sejamos seres/cidadãos/cidadãs o ano inteiro e precisamos ter nossas demandas atendidas por 365 dias, não apenas em um mês, acho muito bonito (e importante) termos uma data para gritar “Ainda estamos aqui”. A noção de ser visível se opõe a um projeto político de aniquilação e extermínio que tem início há uns 500 anos com a marcha colonial. Afinal, quando Xica Manicongo em 1591 é condenada à fogueira por não aceitar “ser Francisco” e “vestir-se como homem”, já temos uma maldição colonial que recairá sobre os corpos e corpas de todas, todos e todes nós pelos últimos 4 séculos.

A ideia do colonizador era muito clara (e uso clara propositalmente mesmo, pois não apenas diz respeito a um projeto masculinista, sexista transfóbico, mas também eugenista, racista e eurocêntrico): homens deveriam ser (natural, biológica e intrinsecamente) superiores a mulheres, de modo que tudo o destoante precisasse ser exterminado. Não à toa, somos empurradas para guetos e esquinas de prostituição, tendo que vender nossos corpos como mercadoria barata para ter um mínimo de subsistência. Nunca sujeitas, sempre objetas. Quando muito vistas, escreviam sobre nós, não conosco. Acadêmicos, jornalistas e alguns ativistas cisgêneros (e em sua absoluta maioria brancos) vinham até nós com olhar perplexo e exotificante. Quando não completamente invisíveis e violadas, nossas narrativas e histórias eram expropriadas para beneficiar carreiras e fetiches cisgêneros, corroborando suas fantasias sobre nós.

Mas as netas das prostitutas saíram das pistas (e se precisar voltar, não será problema algum!). Hoje, estamos no Congresso, nas universidades e até em Harvard. Mesmo com todos os esforços, com todo o investimento, com todas as políticas de perseguição, aqui estamos. Ameaçadas de morte, mentalmente sobrecarregadas, ainda preteridas afetivamente e lutando pelo mínimo de cidadania, mas ainda assim existimos. Existimos contra tudo e contra todos.

E mesmo com um governo imperialista estadunidense tentando nos ocultar, apagar nossas bandeiras, nossos símbolos e quaisquer garantias legais que tivéssemos, ainda assim, cá estamos. Mesmo com plataformas bilionárias fazendo o que previmos que eles fariam (mudar de ideia quanto à tal “diversidade” a seu bel prazer, quando não lhes fosse mais economicamente conveniente), ainda assim aqui estamos. Porque travestis e pessoas trans não chegaram a esta terra ontem. Não somos uma “epidemia” moderna (ou pós-moderna). Existências de corpos como os nossos ultrapassam os séculos e eram inclusive sagrados, como os de Xica.

Por isso acho bonita a ideia de “visibilidade”, pois ainda que em um mundo contra nós, que quando nos vê atira pedras, nos erguemos de pé. Erguidas em Marsha, nos levantamos por direitos e por uma liberdade que não apenas nos atinge, mas a todo um mundo. Para mim, é lindo o que fazemos ao existir numa sociedade que nos queria mortas e, ainda assim, lutarmos para torná-la melhor. Podem tentar nos apagar do passado, presente e futuro. Trump, Bolsonaro, Musk, Zuckerberg. Muitos antes deles tentaram e não tenho dúvida que tantos outros seguirão na mesma missão colonial depois. Porém, tão certa quanto a opressão, será nossa resistência.

A resistência de Jovanna Baby, que pariu um movimento de travestis e trabalhadoras sexuais ainda em plena ditadura. A resistência de Katia Tapety, que se fez a primeira de nós a atingir um cargo eletivo neste país. A resistência de Erika Hilton e Duda Salabert que chegaram ao Congresso Nacional. A resistência de Jaqueline Gomes de Jesus, de Iyá Fernanda de Moraes, de Keyla Simpson, de Indianarae Siqueira e tantas outras. Outro dia, li em um post que travestis são imortais, pois vivemos umas nas outras. Sendo assim, nunca seremos invisíveis, pois fizemos um pacto de sangue para nos mantermos vivas. E essa é nossa maior vingança. Essa é a benção/herança que herdamos de Xica.

Victória Dandara Victória Dandara é travesti, cria da zona leste de São Paulo (SP), pesquisadora em direitos humanos, advogada transfeminista e filha de Oyá. Foi uma das primeiras travestis a se graduar em direito na USP e hoje luta não só pela inclusão da população trans e travesti, mas por uma emancipação coletiva a partir da periferia e da favela.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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